Sede: Escola de Belas Artes da UFMG.
Coordenação: Prof. Dr. Antonio Hildebrando
Co-coordenação: Prof. Ms. Eduardo dos Santos Andrade

sábado, 30 de outubro de 2010

Psístrato, o sagaz tirano de Atenas que promoveu o comércio e as artes e foi o fundador das Panatenéias e das Grandes Dionisíacas, esforçou-se para emprestar esplendor a essas atividades públicas. Em março do ano de 534 a.C., trouxe de Icária para Atenas o ator Téspis, e ordenou que ele participasse da Grande Dionisíaca. Téspis teve uma nova e criativa ideia que faria história. Ele se colocou à parte do coro como solista, e assim criou o papel do hypokrites (“respondedor” e, mais tarde, ator), que apresentava o espetáculo e se envolvia num diálogo com o condutor do coro. Essa inovação, primeiramente não mais do que um embrião dentro do rito do sacrifício, se desenvolveria mais tarde na tragédia, etimologicamente, tragos (“bode”) e ode (“canto”).
Nenhum dos presentes na Dionisíaca de 534 a.C. poderia sonhar com o alcance das implicações que este acréscimo inovador de diálogo ao rito traria para a história da civilização e, menos ainda, o próprio Téspis. Até então, ele perambulara pela zona rural com uma pequena troupe de dançarinos e cantores e, nos festivais rurais dionisíacos, havia oferecido aos camponeses da Ática apresentações de ditirambos e danças de sátiros no estilo de Arion. Supõe-se que viajasse numa carroça de quatro rodas, o “carro de Téspis”, mas esta é apenas uma das inerradicáveis e graciosas ilusões que o uso linguístico perpetuou. O culpado nesse caso foi Horácio, que nos conta que Téspis “levava seus poemas num carro”. Mas essa informação diz respeito somente à sua participação na Dionisíaca, e não a algo como uma carroça-palco ambulante. O ritual da dança coral e do teatro era precedido por uma procissão solene, que vinha da cidade, e terminava na orquestra, dentro do recinto sagrado de Dionísio. O clímax dessa procissão era o carro festivo do deus puxado por dois sátiros, uma espécie de barca sobre rodas (carrus navalis), que carregava a imagem do deus ou, em seu lugar, um ator coroado de folhas de videira. O carro-barca recorda as aventuras marítimas do deus, pois, de acordo com o mito, Dioniso, quando criança, fora depositado na praia pelas ondas do mar, dentro de uma arca. Enquanto elemento procriador que abriga o mistério primordial da vida, a água sempre foi um ingrediente importante dos cultos de qualquer povo; são testemunhos disso o culto de Osíris do antigo Egito, o Moisés bíblico e o pescador divino da dança kagura japonesa.
O deus – ou o ator – no carro-barca senta-se entre dois sátiros flautistas e segura folhas de videira nas mãos, conforme os pintores de vasos do início do século VI a.C. mostraram em inúmeras variantes. Assim, sem dúvida, Téspis se apresentou na Dionisíaca de Atenas, usando uma máscara de linho com os traços de um rosto humano, visível à distância por destacar-se do coro de sátiros, com suas tangas felpudas e cauda de cavalo.
O local da Dionisíaca de Atenas era a encosta da colina do santuário de Dioniso, ao sul da Acrópole. Ali erguia-se o templo com a velha imagem de madeira do deus, trazida de Eleutera; um pouco mais abaixo ficava o círculo da dança, e então, num terraço plano, a orchestra. Em seu centro, sobre um pedestal baixo, erguia-se o altar sacrificial (timelê). A presença do deus tornava-se real para os espectadores; Dioniso estava ali com todos eles, centro e animador de uma cerimônia solene, religiosa, teatral. Como todas as grandes peças cultuais do mundo, esta começou com um sacrifício de purificação. 

 BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro.São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 104-105